Em meados do século passado a filosofia francesa dava sinais de um gosto novo pelo singular. Obras ainda hoje relevantes mesmo fora da França como O imaginário (1940) de Jean-Paul Sartre, A estrutura do comportamento (1942) e A fenomenologia da percepção (1945) ambas de Maurice Merleau-Ponty, O segundo sexo (1949) de Simone de Beauvoir deixam claro que a palavra de ordem “rumo ao concreto” não ficou apenas na intenção; por outro lado, outras obras como O normal e o patológico (1943) de Georges Canguilhem conferem a ela um significado de fundo que atravessava partidos filosóficos. A imaginação e a imagem, o comportamento e a percepção, o corpo e a mulher, a medicina e a vida podem ser elencados como alguns dos objetos que, relegados pelo próprio pensamento francês clássico e moderno ao âmbito do não senso, precisaram arrancar sua validação filosófica a uma concepção alargada de racionalidade fruto do empenho decisivo dessa geração de intelectuais. Porém, se desde então a esse conjunto não deixaram de se somar outros objetos (tecnologia, sexualidade, raça, colonialismo – para nos atermos apenas a alguns deles caros à filosofia escrita em francês), ao contrário do que essa proliferação parece sugerir, sua introdução no debate filosófico continua a se fazer acompanhar de algum tumulto ou inquietação, num confronto mais ou menos tácito com os limites de sua própria validação filosófica, a qual, nesse sentido, parece volátil ante a presença monumental dos grandes temas da filosofia mais claramente afins aos chamados universais. Neste momento em que as tensões entre esses diferentes arranjos epistemológicos se fazem ainda mais agudas, fizemos a aposta de investigar o pensamento de Georges Canguilhem por ter ele desempenhado nessa reabilitação do singular pela filosofia francesa o papel de ator por meio de suas obras escritas, mas também o de artífice, por meio de sua atuação institucional ao abrir o campo para trabalhos com esse mesmo feitio. Esta pesquisa apresenta seus resultados em três eixos: no primeiro deles, tento reconstituir as escolhas teóricas e metodológicas calcadas neste pendor pelo singular que levaram Canguilhem pautar seu fazer filosófico pelo problema da vida ao dar consequência para o diagnóstico que faz a respeito da tarefa a que a filosofia de seu tempo deveria fazer frente, o qual culmina no projeto de O normal e o patológico. No segundo eixo, para justamente ponderar acerca das escolhas teóricas e metodológicas que fazem do exame do par de conceitos o normal e o patológico a chave para a tarefa filosófica de sua geração, a pesquisa retoma – em termos canguilhemeanos – como esse par de conceitos é colocado na ordem do dia por uma sociologia e criminologia nascentes e ainda imbricadas à filosofia, de tal modo que nos fizeram reconhecer a presença insistente embora tácita de um certo vitalismo na diferentes valorações sobre como seus objetos se instituíam, ou melhor se transformavam, desde o mundo social. A constatação de que esse reconhecimento, porém, parece ter escapado a Canguilhem nos levou a pensar de revés o que medicina e criminologia oitocentista puderam aportar ao reconhecimento da normatividade como forja de valores vitais e sociais: e este é o mote do terceiro e último eixo desta tese. Por razões que espero demonstrar a partir dos resultados de minha pesquisa não só da obra publicada, mas também nos arquivos de inéditos de Canguilhem, me pareceu mais do que pertinente fazer isso a partir do exame do par de conceitos o normal e o patológico em alguns expoentes do pensamento médico e criminal brasileiro. Por meio desse percurso anarcônico, espero empenhar por fim algumas das lições aprendidas com Canguilhem para o tratamento filosófico do singular.
DALILA PINHEIRO DA SILVA
Curso
Doutorado
Título de la investigación
Meandros do vital: filosofia, vida e pensamento social em Georges Canguilhem
Resumo da pesquisa
Orientador
Márcio Suzuki
Fomento
CAPES
Data da defesa
10/03/2025