Pablo Rubén Mariconda (1949-2025)

Além de grande e leal amigo, o professor Pablo Rubén Mariconda (31/10/1949-15/05/2025) foi nossa principal referência em teoria do conhecimento e filosofia da ciência no Departamento de Filosofia da USP e, com todos os méritos, tornou-se em 2005 o primeiro professor titular dessa área. Nós o conhecemos por volta de 1974, ocasião em que nos impressionou sua extraordinária vocação para o ensino de filosofia. Tornou-se professor Auxiliar de Ensino de nosso departamento em 1972 e contava também com a experiência de lecionar no segundo grau. Sua presença em sala de aula era marcante, com barba e cabelos longos, voz firme e segura, impecável uso da lousa, profundo domínio dos temas tratados e extrema seriedade. Nas conversas após as aulas havia, contudo, um clima de descontração. Os alunos deparavam-se com um professor gentil, generoso, sorridente, com entusiasmo contagiante e sempre disposto a auxiliar quem demonstrasse interesse. Manteve por décadas grupos de estudo e pesquisa com alunos de graduação e pós-graduação, e seu modo característico de trabalhar em equipe resultou na formação de dezenas de pesquisadores e professores universitários, nos mais variados estados do Brasil.
Em suas teses de mestrado, doutorado e livre-docência e outros numerosos trabalhos acadêmicos, ele transitou, com notável erudição e rigor, por um vasto campo de estudos da ciência: em filosofia das ciências naturais (especialmente as concepções de Popper e Duhem), em história da ciência (com destaque para as magníficas traduções comentadas de obras de Galileu) e em discussões contemporâneas das relações entre ciência, tecnologia e sociedade (dando continuidade às propostas de Lacey). Suas pesquisas mais recentes exploraram a relação entre arte, técnica e ciência na passagem do Renascimento ao início da ciência moderna (de Dante a Galileu). Sempre trabalhou intensamente e há poucas semanas concluiu a revisão de uma tradução ricamente ilustrada e comentada de obra do jovem Galileu. 
Seu espírito atuante e empreendedor esteve presente nas mais diversas ocasiões. Foi três vezes chefe de departamento, presidente da ANPOF, fundou o GT de Filosofia, História e Sociologia da Ciência e da Tecnologia da ANPOF e coordenou o acordo CAPES/COFECUB. além de projetos temáticos da FAPESP. A partir de 2003, dedicou-se, de corpo e alma, a seu principal projeto. A criação da revista Scientiae Studia, revista latino-americana de filosofia e história da ciência, da qual foi editor-chefe durante 15 anos, e a fundação, em 2004, da Associação Scientiae Studia, a fim de promover eventos e editar importantes textos filosóficos segundo os mais elevados padrões acadêmicos. Para sediar a associação, investiu seus próprios recursos na compra e completa reforma de uma casa no Butantã, preparada para realizar reuniões e seminários e abrigar milhares de livros e revistas em grandes estantes metálicas construídas sob medida.
Sua postura assertiva sempre esteve acompanhada de um coração meio brasileiro e meio argentino, de uma atitude quase paternal com os alunos, de extremo zelo pelos filhos e crescente preocupação com os problemas que afligem a humanidade. Nisso lembrava seu pai italiano Letício, que com ele cursou a graduação e o auxiliou na revisão de várias traduções. Como colegas, tivemos a feliz oportunidade de com ele trabalhar durante mais de três décadas para a consolidação de nossa área. Como amigos, somos imensamente gratos pelas ricas conversas, sincera camaradagem e exemplo ímpar de integridade e dedicação a nobres ideais.

Caetano Ernesto Plastino
José Raymundo Novaes Chiappin

 

Pablo Rubén Mariconda, 1949-2025: Alguns traços para um retrato

Valter Alnis Bezerra
Professor do Departamento de Filosofia da FFLCH-USP

As lembranças que vem à tona nesse dia de profunda tristeza, em que Pablo Rubén Mariconda, professor titular aposentado do Departamento de Filosofia da FFLCH-USP, não está mais conosco, são tantas e tão vívidas que desafiam a minha capacidade de colocá-las em palavras.

Mais de uma vez, ao longo dos anos, vi-me descrevendo, para diversas pessoas, a personalidade e o trabalho do Pablo, sua energia aparentemente inesgotável, e sua capacidade de agregar grupos e formar gerações de professores e pesquisadores, com as palavras: "é como se ele fosse, por si só, uma instituição inteira de pesquisa". Sua voz tonitruante, em que cada palavra soava nítida e clara, era facilmente ouvida no corredor. Seu raciocínio filosófico, sua didática em aula, e sua leitura cuidadosa dos autores eram tão claras quanto sua fala. Mas Pablo não queria ser um solista; ele era uma pessoa do grupo, da comunidade, do coletivo, alguém que queria sempre encontrar formas de juntar forças com outras pessoas em busca de propósitos os mais elevados.

O grupo de estudos dirigido por ele no Departamento de Filosofia, que se reuniu regularmente e com frequência durante décadas, agregava os orientandos de mestrado e doutorado, de iniciação científica, professores de outras instituições e participantes que tinham afinidade com os temas. O grupo era animado por tamanho ímpeto e motivação que, lembro-me bem, em certo ano (eu estava no doutorado, creio) iniciou as reuniões em pleno dia 2 de janeiro - com todo mundo presente, mesmo com o campus da Universidade ainda praticamente vazio. Esse era o poder catalisador e agregador do Pablo. Nesse grupo discutiam-se, semana após semana, mês após mês, semestre após semestre, textos produzidos pelos próprios integrantes do grupo, estudavam-se textos fundamentais da Filosofia da Ciência, da História da Ciência, e da Historiografia, e faziam-se seminários sobre textos clássicos, como os "Elementos" de Euclides - teorema por teorema.

A coesão do grupo de estudos se transportava para os fortes vínculos de amizade que se estabeleciam entre os integrantes, amizades que perduraram durante toda a vida. Com frequência Pablo recebia todos e todas em seu apartamento, com calorosa hospitalidade, e muitas vezes por mês almoçávamos ou jantávamos todos juntos.

Pablo foi um grande formador. De norte a sul do Brasil, em um sem-número de universidades, encontram-se hoje docentes que um dia foram seus alunos e alunas. Sua influência, seu exemplo, fazem-se sentir maneira muito concreta e positiva, e continuarão a ser sentidos por muito tempo.

Nunca me esqueci das palavras entusiasticamente acolhedoras que ouvi do Pablo, quase quatro décadas atrás: "Valter, bem-vindo ao nosso grupo". Pablo foi um dos principais responsáveis por despertar meu interesse para a Filosofia da Ciência, ainda na graduação; depois como orientador de mestrado, supervisor de pós-doutorado, finalmente colega. Sempre um exemplo, modelo, interlocutor, conselheiro. Magistral e rigoroso como orientador de pesquisa, professor inspirador, colega de trabalho participativo. Era de uma generosidade notável, sempre disposto a compartilhar seu conhecimento profundo de Filosofia da Ciência, História da Ciência, História das Ideias, História da Filosofia, fosse numa conferência plenária, numa aula, numa mesa redonda em um evento promovido por estudantes, em uma ONG, em uma entrevista, o que fosse. Várias vezes vi o Pablo iniciando uma discussão filosófica, com o máximo rigor e erudição, em algum lugar informal e improvisado - algumas cadeiras em roda, uma sala emprestada provisoriamente, a lateral de um auditório.

Vários projetos do Pablo foram de longa duração e de fôlego - projetos não só acadêmicos, mas também de vida, e daquilo que ele entendia como missão - como a revista Scientiae Studia - que foi publicada durante uma década e meia, com um projeto gráfico e editorial que fez história no meio acadêmico brasileiro -, a Associação Scientiae Studia - cujas instalações Pablo projetou, reformou e construiu inicialmente com recursos próprios -, a coleção de livros editados pela Associação, que continua sendo publicada até agora. Ainda me lembro das inúmeras e longas (e às vezes acaloradas) reuniões para definir as normas editoriais da revista, os estatutos da associação. Lembro-me também claramente da vibração e do entusiasmo com que Pablo nos mostrou, orgulhosamente, as novas instalações da Associação - uma conquista pessoal, sem dúvida, mas, principalmente, um legado para a Filosofia brasileira. Nas dependências da Associação, ficaram hospedados muitos pesquisadores/as do Brasil e do exterior em viagem, e foram realizados inúmeros cursos, ciclos de palestras, reuniões de trabalho, seminários.

Pablo tinha uma disposição invejável para enfrentar os detalhes burocráticos inerentes aos processos de costurar acordos de cooperação acadêmica interinstitucional, e também para trazer professores visitantes para o Departamento de Filosofia. Repetidamente convidava e recebia os professores Michel Paty e Hugh Lacey, que tanto contribuíram para a formação de filósofos e filósofas no Brasil, em suas muitas vindas ao nosso país, ao longo de décadas. Juntamente com Lacey, nos anos 2010, Pablo desenvolveu a versão mais madura e articulada do Modelo de Interação Ciência-Valores (MI-CV: ver, por exemplo, os artigos de 2014 da dupla, nas revistas Estudos Avançados e Scientiae Studia), cujas bases haviam sido lançadas por Lacey nos anos 1990 e 2000. Também organizou a vinda ao Brasil de professores como David Miller, Terry Shinn, Jean-Jacques Szczeciniarz, Andrew Feenberg, e vários outros.

Mesmo aposentado, Pablo vinha com frequência ao Departamento, orientava mestrados e doutorados, supervisionava posdocs. Participava de reuniões da área de Teoria do Conhecimento e Filosofia da Ciência, onde atuou durante mais de quatro décadas. Não mais do que um mês atrás, agora em 2025, encontrei-me um par de vezes com o Pablo e ele, animadamente, me falou longamente sobre o seu livro novo, que já estava revisado, diagramado e pronto para publicação, sobre a Cosmologia e a visão de mundo de Dante na Divina Comédia, a Cosmologia de Galileu e o contexto geral do Renascimento Italiano, em seus diversos momentos.

Lembro-me do impacto gerado pela sua primorosa tradução, fartamente anotada, e acompanhada de uma magistral introdução, do "Diálogo sobre os Dois Máximos Sistemas do Mundo - Ptolomaico e Copernicano" de Galileu, publicada em 2000 (com nova edição em 2011) - um trabalho de grande fôlego, oriundo da sua livre-docência.

Sua tradução dos "Discursos e Demonstrações sobre Duas Novas Ciências" de Galileu, realizada juntamente com seu pai Letizio Mariconda, fora publicada no final dos anos 80, pela editora Nova Stella, então ligada ao IF-USP, numa edição datilografada, que ainda hoje tenho comigo, e posteriormente havia sido digitalizada e rediagramada, estando praticamente pronta para ganhar uma nova edição.

Entre os trabalhos publicados com ex-orientandos, merece destaque o livro "Galileu e a Nova Física", escrito juntamente com Júlio Vasconcelos, que recebeu em 2020 uma segunda edição primorosa - a melhor exposição de caráter introdutório em língua portuguesa sobre o pensamento científico de Galileu. A ele se somam artigos co-autorados com Claudemir Tossato e com Maurício Ramos. Em 2018, um grupo formado por Pablo, Claudemir Tossato, Paulo Tadeu da Silva, Marisa Donatelli, César Battisti, Érico Andrade e Guilherme Rodrigues Neto publicou (pela Editora da Unesp) a notável tradução integral do "Discurso do método" de Descartes e dos tratados científicos que o acompanham - a "Dióptrica", os "Meteoros" e a "Geometria".

As produções acadêmicas iniciais de Pablo, quando ainda jovem professor auxiliar de ensino no Departamento de Filosofia, ainda hoje podem ser consultadas: as suas traduções de Popper, de Carnap e outros autores na coleção Os Pensadores, e sua contribuição para o volume "Primeira Filosofia", da Brasiliense, escrito por professores do Departamento. Sua dissertação de mestrado sobre Popper, de 1979, orientada por Oswaldo Porchat, e sua tese de doutorado sobre Pierre Duhem, de 1986, orientada por João Paulo Monteiro, podem ser consultados no acervo da biblioteca da FFLCH-USP. Um pouco mais tarde, viria o número especial da Revista "Ciência e Filosofia", de 1990, hoje disponível online, contendo traduções pioneiras de textos de Pierre Duhem em português, feitas por integrantes do seu grupo - que, até a chegada do volume organizado mais recentemente por seu ex-orientando Fábio Rodrigo Leite, constituíram por muito tempo a principal porta de entrada para o pensamento de Duhem em português.

A partida repentina de Pablo Rubén Mariconda, num momento da vida em que ainda estava cheio de energia, criatividade e com projetos em andamento, deixa uma enorme lacuna na Filosofia brasileira, e uma grande saudade em todos aqueles e aquelas que foram tocados/as por sua energia, bom humor, rigor, dedicação, originalidade, coragem, integridade, visão e hospitalidade.

 

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Prezados, 

Informamos com pesar o falecimento do professor Pablo Rubén Mariconda, do Departamento de Filosofia, ocorrido na noite de 15 de maio de 2025.

Perdemos um de nossos maiores Professores.
Pablo Rubén Mariconda faleceu na noite de ontem e foi professor do Departamento por mais de 50 anos, atuando na área de Teoria do Conhecimento e Filosofia da Ciência. Autor de uma vasta obra sobre o nascimento da Ciência Moderna e Presidente da Associação Scientiae Studia, sua atuação evidenciava todo seu entusiasmo pela vida intelectual. Para além de seu estimulante trabalho, também perdemos um professor generoso, solidário e que teve influência decisiva nos caminhos que muitos de nós trilhamos.

O velório será amanhã, dia 17 de maio, das 6h00 às 15h00 no Funeral Home, Rua São Carlos do Pinhal, 376 – Bela Vista, São Paulo