Vinicius Berlendis de Figueiredo (1965-2025)
Ainda sob o impacto da partida definitiva, difícil dar conta nesta breve nota de toda a dimensão humana de alguém tão querido por todos como o nosso Vinas. Os que com ele conviveram, sabem como cultivava a amizade, prezada acima de tudo, mesmo e sobretudo na diferença. Seu jeito descontraído foi a forma amistosa, cuidadosamente conquistada, que encontrou para lidar com os desafios. No calor das disputas políticas, filosóficas, futebolísticas, lembrava que torcia saudavelmente à distância por um time do interior do Estado de São Paulo; nunca deixou de reconhecer as qualidades daqueles que discordavam de suas posições – jamais levadas a ferro e fogo.
Vinas fez o curso de filosofia num momento muito especial, tendo compartilhado os anos de graduação e de mestrado com uma geração particularmente viva, de amigas e amigos sempre lembrados por ele, e que se lembrarão certamente dele para sempre; são tantos os nomes, que não citarei nenhum sob pena de esquecer a quase maioria. No mestrado (defendido em 1993) decidiu fazer uma tradução comentada e anotada das Observações sobre o belo e o sublime, de Immanuel Kant. O texto de apresentação é um ensaio admirável, onde discute o papel da aparência nas relações sociais, com a clara sugestão de que, sem esse Kant sociável não se pode compreender bem como o Kant do rigor conceitual chegou a formular a ideia de ilusão dialética. O doutorado (1998) dá de algum modo continuidade a essa discussão ao estudar a gênese da crítica kantiana na década que vai de 1762 a 1772: Kant precisou se colocar do lado de fora da filosofia para poder entender o método, a teoria e a prática que conviriam a uma filosofia dogmática pós-metafísica. Mestrado e doutorado foram escritos sob a orientação de José Arthur Giannotti; de 1990 a 1993, fez parte do quadro de pesquisadores do Cebrap.
Em 1993 iniciou sua carreira como professor na Universidade Federal do Paraná. Junto com outros jovens colegas ingressantes na mesma época, ajudou a promover uma espécie de refundação do Departamento de Filosofia e a conseguir, entre tantas outras coisas, a aprovação do curso de doutorado; também coordenou ali, por mais de vinte anos, um grupo de estudos dedicados à filosofia moderna e contemporânea. Sua atuação institucional é nada menos que exemplar: foi chefe e coordenador de pós-graduação do Departamento, presidente do Comitê de pesquisa em ciências humanas, letras e artes da UFPR, secretário geral da Sociedade Kant Brasileira, presidente da Anpof, coordenador adjunto e coordenador titular da área de Filosofia na Capes – cargos estes últimos para os quais foi eleito por sua competência e equanimidade, e que os exerceu como tal. Como pesquisador, foi bolsista do CNPq, professor visitante na Universidade de Paris-Nanterre, na PUC do Rio de Janeiro e no Departamento de Filosofia da USP, onde se tornou recentemente membro docente do curso de pós-graduação. Também foi professor de pós-graduação na Universidade Federal do ABC. Fazia parte do comitê editorial de diversos periódicos especializados, tendo ajudado a fundar a revista dois pontos, nome por ele escolhido em homenagem à dupla sede da publicação (UFPR/UFSCar). Certamente, essa relação está longe de completa, pois por sua formação tão ampla era convidado a participar de congressos, cursos, publicações de diferentes áreas, como epistemologia, política, ética, moral, estética e literatura. A não especialização era para ele uma forma de generosidade e companheirismo.
Em 1995 publicou Quatro figuras da aparência, em 2005, Kant: crítica da razão pura. Entre os muitos livros que organizou ou ajudou a organizar, citarei apenas a edição da série Filósofos na sala de aula e do livro paradidático Filosofia: temas e percursos; foi coorganizador da obra coletiva Gérard Lebrun philosophe. Por volta de 2012 começou a refletir sobre as relações entre estética e política na França dos séculos XVII e XVIII, numa pesquisa que culminou em seu livro A paixão da igualdade. Uma genealogia do indivíduo moral na França (2021). Para além do objeto de estudo específico, a obra, também já em seu título, diz muito das convicções éticas e políticas do autor (liberdade, igualdade, autonomia do sujeito). Neste seu livro, também começou a apostar mais em sua vocação para o ensaio, já mostrada no estudo de apresentação ao mestrado e nos muitos artigos e resenhas que escreveu. Mais recentemente, vinha tentando encontrar uma forma de casar essa forma ensaística mais aberta com a aridez de sua recente pesquisa sobre a política e a cultura no Brasil das décadas de 1960 a 1980. Também estava começando a preparar uma reedição da tradução das Observações de Kant, quando o editor lhe pediu que escrevesse uma nota de advertência sobre o racismo e o machismo do filósofo: ele tinha ideias muito interessantes sobre a questão.
De seu casamento com Maria Isabel Limongi deixou dois filhos, Laura e Chico, que, junto com Giovana Braga, enfrentaram corajosamente os derradeiros dias do pai. Em novembro de 2024, convidou familiares, amigas e amigos para uma festa em comemoração ao ano que havia passado como professor visitante em São Paulo e em celebração antecipada de seu aniversário. Creio que na lembrança dos que ali estiveram ela vem agora à mente como uma cerimônia de despedida, preparada, com o carinho de sempre, para os amigos de antes e os que conquistara agora. Essa versão pode ser falsa, mas, por toda a sua trajetória, não há talvez como não acreditar nela; dias antes havia convidado os funcionários do Departamento de Filosofia para uma comemoração de agradecimento. E, infelizmente, já não podemos mais lhe pedir: Bravo, maestro! Da capo!
Marcio Suzuki
29/01/2025