Homenagem ao Professor Pablo Rubén Mariconda

Auditório 14
Sexta (23/5) às 14h

Morre Pablo Mariconda, gigante da filosofia e crítico das promessas da tecnociência

O universo fechou uma janela para seu próprio entendimento. Faleceu em São Paulo, aos 75 anos, Pablo Rubén Mariconda, professor titular aposentado de Teoria do Conhecimento e Filosofia da Ciência da Universidade de São Paulo (USP) e um dos principais nomes do pensamento crítico sobre ciência e tecnologia no Brasil.

Argentino de nascimento, Mariconda veio para o Brasil ainda criança, aos cinco anos de idade, acompanhado por seus queridos pais, Anna e Letizio Mariconda. Sua trajetória reflete as possibilidades abertas pela São Paulo de seu tempo, inteiramente construída no interior do sistema público de ensino e pesquisa do país. Foi por meio da escola pública que se preparou para cursar Engenharia Aeronáutica no ITA — instituição da qual literalmente escapou, pulando os muros durante a noite, para seguir um chamado mais profundo: explorar o desconhecido na Faculdade de Filosofia da USP, onde permaneceu desde então, em um engajamento de corpo e alma.

Com dedicação integral, consagrou sua vida à filosofia e à história do conhecimento, da ciência e da tecnologia, sempre guiado pela convicção inabalável de que o saber deve ser público e universal. Essa mesma convicção o impulsionou a enfrentar as profundas transformações que afetaram a universidade, a ciência e a própria filosofia nas últimas décadas. Como resposta a esse cenário, engajou-se em parcerias fundamentais voltadas à análise crítica das práticas tecnocientíficas contemporâneas e de sua intensa associação com os valores do capital e do mercado — uma aliança que, segundo ele, compromete gravemente a busca pela objetividade do conhecimento.

Mariconda teve papel central na implantação e consolidação da filosofia da ciência como campo de estudo crítico e interdisciplinar, contribuindo de forma decisiva para os debates contemporâneos sobre os limites da racionalidade científica e os dilemas éticos da tecnociência. Sua trajetória intelectual abrange múltiplas frentes: investigações rigorosas sobre a história do pensamento científico, traduções e edições críticas de obras fundadoras da modernidade, formação de quadros acadêmicos e atuação constante na crítica aos modelos reducionistas de ciência e à dependência das agendas tecnocientíficas em relação aos interesses mercadológicos.

Graduado, mestre, doutor e titular pela USP, onde foi orientado por Oswaldo Porchat e João Paulo Monteiro, Mariconda destacou-se inicialmente por estudos sobre Karl Popper, Pierre Duhem e o debate entre realismo e instrumentalismo na filosofia da ciência. Por mais de quatro décadas, foi professor de graduação e pós-graduação na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH-USP), onde também coordenou, a partir dos anos 1980, um dos grupos mais influentes de filosofia e história da ciência da América Latina. Como orientador, formou dezenas de pesquisadores — entre mestres e doutores — e era reconhecido por sua exigência teórica, profundidade metodológica e constante estímulo ao pensamento crítico. Muitos de seus ex-alunos ocupam hoje cargos de docência nas mais importantes universidades do Brasil.

Ao longo de sua profícua carreira, publicou artigos acadêmicos, capítulos e ensaios em periódicos nacionais e internacionais de alto prestígio, além de organizar cerca de 20 livros — muitos deles frutos de projetos coletivos de pesquisa. Foi responsável por traduções de grande relevância para o público de língua portuguesa. Destaca-se sua edição bilíngue, comentada e amplamente anotada do Diálogo sobre os Dois Máximos Sistemas do Mundo, de Galileu Galilei, considerada até hoje a tradução mais completa dessa obra para o português. Traduziu também, com seu pai, os Discursos e Demonstrações sobre Duas Novas Ciências, além de escrever e reeditar Galileu e a Nova Física em uma edição primorosa, repleta de imagens e com curadoria editorial de fino acabamento. Em 2018, organizou a publicação integral, com introdução e aparato crítico, de quatro obras fundamentais de René Descartes — trabalho que foi laureado na edição de 2019 do Prêmio ABEU.

Mariconda era uma autoridade inconteste em sua área de conhecimento. Coordenou diversos projetos de pesquisa financiados pela Fapesp, Capes e CNPq. Com o apoio dessas agências, dirigiu estudos de fôlego sobre o desenvolvimento da racionalidade científica moderna, a história da constituição do saber científico e as interações entre valores sociais e práticas epistêmicas. Um de seus projetos mais reconhecidos pela Fapesp investigou a historicidade da ciência moderna em suas dimensões filosófica, cosmológica e epistemológica. Outro, em parceria com o filósofo Hugh Lacey, aprofundou o modelo de interação ciência-valores (MI-CV), hoje amplamente debatido em redes internacionais de estudos críticos sobre ciência e tecnologia.

Mas Mariconda foi também um cientista autônomo e atuou independentemente de financiamento público. Em 2003, fundou a Associação Filosófica Scientiæ Studia — uma “guilda”, como ele mesmo dizia — nascida de seu desejo de entender os modos de produzir e conduzir a ciência no mundo contemporâneo. A Associação tornou-se um núcleo de pensamento crítico, engajado e plural. Em mais de duas décadas de atuação, consolidou um catálogo que inclui 60 volumes do periódico homônimo, mais de 25 títulos de livros, traduções com aparato crítico e incursões no universo das artes gráficas e visuais.
Sua mais expressiva produção editorial, a revista Scientiae Studia, voltada à articulação entre ciência, filosofia e sociedade, tornou-se uma das mais importantes publicações acadêmicas brasileiras em ciências humanas. Com 60 edições publicadas entre 2003 e 2017, incluindo números especiais, a revista acumula um acervo de 477 artigos e mais de 520 textos. Mapearam-se ali os temas mais relevantes da filosofia, história e sociologia da ciência e da tecnologia ao longo de décadas.

Scientiae Studia resistiu ao progressivo encerramento de periódicos acadêmicos no Brasil — especialmente os da área de humanidades — graças ao trabalho incansável de Mariconda e à sua habilidade em articular equipes multidisciplinares. Foi mantida com periodicidade e qualidade rigorosas — um feito raro entre revistas vinculadas à Universidade de São Paulo. Hoje, todo o seu conteúdo permanece acessível gratuitamente em plataformas como SciELO e o Portal de Revistas da USP.
Para abrigar a Associação, Mariconda reformou, com recursos próprios, um sobrado no bairro do Butantã, em São Paulo, onde trabalhou de forma intensa e ininterrupta. Ali construiu um centro de estudos especializado, talvez o maior nos campos da filosofia da ciência e da tecnologia, com um acervo de mais de cinco mil livros físicos, além dos digitais. Esse espaço se tornou um núcleo fundamental para pesquisadores, estudantes e interessados, fortalecendo a produção crítica e interdisciplinar do conhecimento filosófico-científico no país.
A Associação foi pensada para refletir sobre os usos e fins do conhecimento científico: como ele pode ser orientado por princípios éticos, democráticos e ambientalmente responsáveis; como respeitar os direitos e a dignidade humana em meio às transformações tecnológicas; e como restaurar o papel regenerativo da natureza. Para Mariconda, a atividade editorial e institucional era uma extensão natural de seu projeto filosófico: democratizar o saber, fomentar o pensamento crítico e fortalecer os vínculos entre ciência, cultura e sociedade.

Nesse sentido, a Scientiae Studia extrapolou os limites acadêmicos: esteve presente em feiras de arte e publicações internacionais, como nas duas edições do PLANA — Festival Internacional de Publicações, realizado na Bienal e na Cinemateca de São Paulo. Nessas ocasiões, tão afastadas do universo acadêmico tradicional, chamaram atenção as capas, o design gráfico de suas coleções e livros, os cartazes e artes relacionados aos temas de pesquisa conduzidos pela Associação. Mariconda acreditava que o belo também era fundamental na divulgação científica.

Nos últimos anos, seguiu profundamente engajado, concentrando seus esforços na análise crítica da tecnociência e dos efeitos sociais, políticos e ambientais da atual configuração das práticas científicas. Em parceria com Lacey, desenvolveu um referencial teórico robusto para demonstrar como os valores não epistêmicos — como justiça social, sustentabilidade, equidade e solidariedade — podem e devem orientar decisões científicas, desde a definição de problemas até a avaliação de impactos. Defendia que, embora o paradigma tecnocientífico tenha se consolidado como dominante, existem alternativas epistemológicas e institucionais viáveis, que favorecem uma ciência mais democrática, ética e comprometida com o bem comum. Seus estudos sobre alternativas agroecológicas iluminam caminhos possíveis de sobrevivência humana.

Embora aposentado, seguia atuante na vida acadêmica, participando de orientações, bancas, seminários e publicações. Seu último livro, ainda inédito, articula temas de longa maturação: linguagem, conhecimento e cosmologia, com ênfase na transição entre o mundo medieval e a modernidade científica. O projeto parte da análise da cosmologia do Renascimento, combinando leituras de Dante, Galileu e Descartes, e busca compreender a constituição das formas modernas de conhecimento. A obra será lançada postumamente. Além desse trabalho, Mariconda estava envolvido na produção de mais cinco livros, programados para 2025, que também serão publicados conforme o cronograma por ele mesmo definido.

Além de seu vasto legado bibliográfico e institucional, Pablo era conhecido por seu sorriso caloroso, seu espírito acolhedor e sua generosidade intelectual. Doava, como um pai, atenção e afeto aos amigos e alunos. Multiplicam-se as manifestações de pesar por esse extraordinário intelectual e ser humano solar.

Com a morte de Pablo Mariconda, a filosofia da ciência no Brasil perde uma de suas referências mais produtivas e atuais. Seu pensamento permanece vivo, pulsante e essencial para todos que desejam refletir criticamente sobre os sentidos do mundo em que vivemos.

Em sua homenagem, o Departamento de Filosofia da USP organizará um memorial no próximo dia 23/05 (sexta-feira), das 14h às 17h30, no Auditório 14 do prédio de Filosofia e Ciências Sociais.

(Texto de Leticia Mariconda)
 

Local
Auditório 14
Endereço
Av. Prof. Luciano Gualberto, 315. FFLCH/USP. Ed. Filosofia e Ciências Sociais. Cidade Universitária, São Paulo-SP