Bento Prado Jr. (1937-2007)

Em meados dos anos 60, Bento Prado Jr. era uma ilha de literatura cercada de filosofia por todos os lados. Pelo menos assim o viam seus mais próximos companheiros de geração. E para aumentar o desconcerto é preciso lembrar que fora aluno aplicado e convicto de alguns deles. Não é que lhe faltasse o indispensável apetite profissional pelos problemas técnicos; muito ao contrário, cumpria à risca os mandamentos do modesto porém eficiente figurino universitário francês que naquela mesma década acabara finalmente por se firmar, disciplinando a flutuante curiosidade filosófica local. E no entanto havia a pedra literária no caminho. Aí o paradoxo: como entender esta recaída (e logo veremos por que chamá-Ia assim) num ambiente onde não se costumava brincar em serviço? É verdade que consumir literatura, bem ou mal todos consumiam, mas como parte do equipamento cultural de todo homem civilizado, porém coisa à parte do mundo dos negócios filosóficos - e no caso de vida literária pessoal (podia acontecer), ela não deveria ter existência filosófica pública.

Ora, veremos que Bento armara um sistema particular de vasos comunicantes entre estes dois compartimentos. É bom insistir: não se poderia dizer que nosso Autor não tratava com a devida seriedade a causa da filosofia; até demais, pois depositava a mais irrestrita confiança na força reveladora da palavra filosófica. Só que era freqüente acrescentar­lhe um suplemento indefinido - um arabesco em torno do elemento essencial, como diria o Poeta -, atribuído pelos colegas a uma espécie de vezo estetizante congênito, com o qual não era de modo algum desagradável conviver, sobretudo nas horas de folga, mas que no final das contas seria melhor confinar. Tudo bem pesado entretanto, a dupla personalidade intelectual de Bento Prado Jr. era a cifra de um outro problema, para o qual acabou achando uma fórmula de compromisso em proveito daquele mesmo temperamento a um só tempo deslocado e muito à vontade no novo regime da filosofia universitária paulistana.

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Isto posto, no que consistia afinal a simpática heresia de Bento Prado Jr. naqueles anos de ascese metodológica? Retrocesso, persistência da tradição? Nem de longe. Existir podia ainda existir, mas era quase uma reminiscência, a antiga e pacata altemância da rotina e da quimera, professor atualizado durante o expediente, poeta simbolista nas horas vagas. O caso agora era outro. Bento simplesmente começara a insinuar, sem no entanto se dar por achado, que, salvo nas regiões mal demarcadas em que confina com o conhecimento científico, a filosofia bem poderia ser um ramo recalcitrante da cultura letrada. Passado o período de acumulação e assepsia máximas, achava que já era hora da filosofia aprender a escrever, submetendo-se enfim ao teste decisivo: fazer-se entender e até mesmo apreciar por um leitor não especializado porém cultivado. Notando as encrencas expositivas em que nos metíamos, percebera que a filosofia era um gênero novo para o qual ainda não dispúnhamos de língua própria. Por mais que copiássemos as técnicas da dissertação e da explicação de texto difundidas pelos professores franceses, algo lhe dizia que não era menos necessário ajustar-se igualmente aos padrões literários da prosa de ensaio local. Dito isto, não creio estar exagerando se afirmar que a filosofia franco-uspiana começou de fato a escrever com Bento Prado Jr. e que simplesmente lhe devemos a invenção do ensaio filosófico paulistano. E isto numa quadra em que ainda estava bem vivo nos meios uspianos - da sociologia à filosofia - o sentimento da ruptura irreversível com a tirania literária do passado, nos termos em que se viu porém acrescidos da demasia contrária: em muitos círculos passava por prova suplementar de rigor científico a escrita deliberadamente estropiada. Um pouco para chatear, mas não só por isto, Bento resolveu adotar a causa perdida da perfumaria, como lembrou certa vez um veterano daqueles tempos de acumulação primitiva. Guiava-o uma espécie de tirocínio literário que certamente não adquirira em classe.

Por outro lado, esse mesmo golpe de vista escolado pela vida intelectual pregressa lhe sugeria que uma prosa bem armada não poderia deixar de orientá-Io no pensamento. A dificuldade estaria na escolha dos elementos que lhe servissem de modelo e que sobretudo lhe confirmassem a convicção ainda informe de que o momento expressivo é igualmente determinante numa exposição filosófica. Tudo bem pesado, e para resumir, o fato é que ninguém sabia ao certo, preto no branco e silenciada a voz suspeita da tradição, o que significava mesmo escrever no Brasil. Para um sartriano de nascença como Bento o amálgama se fez com naturalidade: não se poderia dar satisfação a esse embaraço congênito da escrita filosófica sem responder à pergunta igualmente especulativa pela essência da Literatura. Estava aberta a porteira por onde passaria a filosofia uspiana da literatura, com maiúscula e tudo. Neste passo não espanta que uma vez encerrada a tese de história da filosofia que devia a seus pares, os primeiros ensaios de Bento tratem abertamente de motivos literários. Ora, o mais surpreendente nesta abertura filosófico-literária, como veremos, é que nosso Autor não precisou renegar a magra dieta especulativa que lhe fora servida pela filosofia universitária francesa para introduzir no elenco dos assuntos nobres a meditação sobre a natureza da literatura. Mas a esta plataforma seria preciso juntar uma combinação igualmente imprevisível de preferências literárias reforçadas pelas transformações extra­curriculares da filosofia francesa.

Duas palavras sobre o epílogo desse roteiro. Muitos anos depois, à procura de algo que definisse o filósofo (por certo uspiano), Bento destacaria no modo de ser desajeitado do personagem uma certa "relação complicada com a linguagem". Mas então já esquecera aquele mal-estar de origem, substituindo-o por um teorema enunciado em benefício da corporação. Só os leigos olham inocentemente para as coisas, enquanto ao espírito filosófico caberia o inexplicável privilégio de uma percepção literal da linguagem, a contra-pelo da visão instrumental corrente. A ser assim, onde se poderia reconhecer o registro retrospectivo de um desconforto real e culturalmente significativo, Bento de fato nos oferecia um elogio da filosofia. Mais adiante, aproveitando a deixa, Rubens Rodrigues Torres Filho extrairia daquela fórmula que repartia a humanidade entre simples usuários da linguagem e os que lutam com as palavras da tribo, pelejando por lhes dar um sentido mais puro, um argumento a mais em favor da convicção de que a incerta fala filosófica uspiana (pelo menos uma variante dela, muito cifrada e oblíqua) poderia encontrar seu lugar natural no igualmente movediço "dizer literário": Como queríamos demonstrar? Ainda não. Nem se poderia dizer que tenha sido esta a meta perseguida por Bento Prado Jr. desde aquele começo tateante à procura de estilo e assunto. O que de fato se pode dizer é que foi o primeiro a recolher os elementos decisivos para a futura cristalização, no âmbito da cultura filosófica uspiana, de uma ideologia literária muito característica, da qual seria então peça chave a referida crença na co-naturalidade de filosofia e literatura.

Extraídas de Um departamento francês de ultramar (São Paulo: Paz e Terra, 1994, páginas 170-177), as palavras do Prof. Paulo Eduardo Arantes testemunham a homenagem deste Departamento à memória de Bento Prado Jr., Professor Emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo

José Arthur Giannotti texto  Diferenças Genéticas 
Roberto Schwarz texto  Às voltas com Bento Prado