José Cavalcante de Souza (1925-2020)

Durante os anos de 1970, sob o terror de Estado, o professor José Cavalcante de Souza foi uma presença decisiva para manter vivo o então combalido Departamento de Filosofia, que perdera professores com cassações e exílios. Com coragem e paciência, defendeu, perante as instâncias de decisão e poder da universidade, o Departamento de Filosofia num dos momentos mais difíceis de sua existência.

 

Profundo conhecedor da língua e da literatura gregas, Cavalcante dividiu suas atividades com o Departamento de Letras Clássicas e a disciplina de História da Filosofia Antiga, pilar do edifício filosófico ocidental. Com dedicação, não apenas ministrou aulas de graduação e pós-graduação de filosofia grega e orientou teses de mestrado e doutorado, mas sobretudo inovou a maneira de nos acercarmos do fazer filosófico no interior da cultura e da história clássicas e deixou um conjunto de obras que constituem um patrimônio para a cultura brasileira.

 

Enviamos à sua esposa Conceição e às suas filhas, nosso pesar e nossa gratidão.

 

 

Assina o texto a Profa. Marilena Chaui representando todo corpo docente do Departamento de Filosofia

 


 

HOMENAGEM PÓSTUMA AO PROFESSOR JOSÉ CAVALCANTE DE SOUZA


O professor Cavalcante foi um pioneiro nos Estudos Clássicos no Brasil. Foi nomeado em 1995, o Presidente de Honra do CPA (Centro do Pensamento Antigo), foi professor titular da Unicamp e da USP. Nasceu em 1925, na cidade de Cariús, localizada no Ceará, e faleceu no último dia 24 de Maio de 2020.

Durante a sua longa trajetória acadêmica, jamais se esqueceu das suas origens nordestinas.

Nesse sentido, me recordo daquilo que ele me confessou, certa vez. Ele me disse, mais ou menos, as seguintes palavras: "Quando aparecem os candidatos a uma vaga de pós-graduação e eu tenho que fazer uma escolha, sempre, levo em conta a origem e oportunidades anteriores de cada aluno." E me explicou ele, caso se apresentam dois alunos de qualidades mais ou menos equivalentes, e se um for do Nordeste e outro de São Paulo ou Rio de Janeiro, eu," disse ele, "dou preferência àquele que veio lá de onde eu vim." Ainda explicitou que isso não expressava nenhum chauvinismo regional, mas sim, a reflexão profunda a respeito das dificuldades que sofriam aqueles que vinham das regiões mais pobres do Brasil. Lugares onde não existem bibliotecas, professores devidamente capacitados, fora as dificuldades gerais de existência que imperam em tantas regiões do nosso pa&iac ute;s.
Esse lado de profundo e rigoroso humanismo social sempre esteve presente em seus ensinamentos. Tinha um grande conhecimento do Grego Clássico que adquiriu, em grande parte, solitariamente, ainda que teve a oportunidade de ser orientado pelo professor francês Robert Henri Aubreton, que lecionava na USP. Cavalcante percorreu durante anos, os textos de Platão, dos pré-socráticos, de Aristóteles e dos poetas gregos, sempre arrastado por essa paixão pelo humanismo helênico. Mas, também sempre não esquecendo do Brasil: contou-me  o `meu colega e amigo, o Professor Jaa Torrano, que conviveu com ele no Departamento de Letras Clássicas da USP, que Cavalcante tinha tal conhecimento do Grego  Clássico que realizou versões de trechos da obra de Machado de Assis para a língua de Platão. Espero que esses manuscritos ainda existam e possam, um dia, serem publicados. Cam inhando em sentido contrário à tendência atual dos estudiosos de Estudos Clássicos no Brasil que vertem os textos que escrevem para o inglês, e gostam de traduzir para o português tudo aquilo que se produz na Europa ou nos EUA, Cavalcante vertia os textos clássicos brasileiros para o Grego do século IV a.C. Caminhava assim contra toda essa tendência que transparece em grande parte da produção em Estudos Clássicos, hoje, no Brasil. Uma das influências contemporâneas que esteve sempre presente nas suas aulas, foi a obra de Jean-Pierre Vernant. Inclusive, já com certa idade, fez um estágio de cerca de dois anos junto ao Centre Louis Gernet, liderado por Vernant e Vidal-Naquet. Ambos estes autores não eram propriamente comentadores dos Gregos, tinham sim uma preocupação histórica e social, algo que sempre permeou também os ensinamentos do Professor Cavalca nte

Outro aspecto bastante importante dos seus ensinamentos que me marcaram muito é aquele de não dar muita importância ao comentadores contemporâneos de Platão ou dos outros autores gregos. Para ele, era mais importante, ler os Gregos a partir dos filósofos, particularmente, Nietzsche, Hegel, e Heidegger. Gostava muito de autores como Burckhardt, grande historiador do século XIX, que escreveu uma longa obra sobre a cultura grega clássica. Tenho certeza que essa orientação marcou a minha própria leitura de Platão, absolutamente heterodoxa. Àqueles filósofos que Cavalcante mais frequentava, eu acrescentei Marx, Deleuze e outros filósofos para compreender Platão.  Da mesma forma, acredito eu, essa maneira de ler os Gregos que marcava o Cavalcante, determinou a originalidade das obras de Jaa Torrano, essa tendência a não crer muito nos c omentado res atuais, e se deter mais nos próprios textos originais, ou ainda, como fazia Cavalcante, valorizar as reflexões filosóficas sobre os Gregos..

Cavalcante orientou toda uma geração de helenistas brasileiros, e não saberia enumerar a todos, lembro de passagem, que os seus discípulos fizeram traduções e teses,  tantos e tantas. Além do Torrano e de eu próprio, recordo, apenas alguns nomes que agora me vem na memória,  Lígia Watanabe, Francisco Benjamin de Souza Netto, Rachel Gazolla, Mary Laffer, Mário Miranda, Lucas Angioni, Maria Carolina dos Santos, Filomena Hirata e muitos outros e outros que eu não posso, realmente,  enumerar...

De acordo com a sua humildade e modéstia, publicou muito pouco de tudo aquilo que produziu. Mas, o volume que organizou sobre os filósofos pré-socráticos, publicado na coleção Os Pensadores, marcou época. Ele próprio traduziu os fragmentos de alguns filósofos, mas, teve a ajuda de diversos dos seus discípulos que traduziram alguns dos fragmentos. O interessante nessa obra organizada por ele, foi, justamente, acrescentar as traduções de textos de Nietzsche, Hegel, Heidegger e outros que não eram propriamente comentadores, mas sim, possuíam uma abordagem filosófica dos textos. Da mesma forma, foi importante o volume da coleção Os Pensadores, que Cavalcante organizou a respeito de Platão. Destaca-se nesse volume a sua própria tradução de O banquete. Publicou além disso alguns artigos, e, depois de aposentado, publicou pela Edi tora 34 uma bela edição e tradução do diálogo Fedro de Platão, com notas do filósofo José Trindade, soube que JAA Torrano teria contribuído na revisão do texto grego final. Mas, parece que chegou a realizar ainda uma tradução inteira da Odisseia de Homero, porém, jamais esta sua tradução veio a público.

Queria ainda deixar aqui uma lembrança de saudades e solidariedade para todos os  seus outros alunos e orientandos aqui não mencionados, particularmente, lembro dos seus familiares, com os quais tive contato sempre muito afetuoso.

 

Alcides Hector Rodriguez Benoit
Professor Colaborador do Departamento de Filosofia da Unicamp